27 de jul. de 2004

LIBERTAS QUAE SERA TAMEN

Ele aguardava a chuva passar, já eram nove e nada de ninguém dormir. Pelas frestas do lençol, dava para ver o mexe-remexe de um sono ensaiado. Nossa avó, irritada, havia decretado toque de recolher logo na semi-final, e tinha o Maradona, tinha Maracanã. Meus olhos já estavam pesados, não tinha ensaiado. Os pingos da chuva no telhado de zinco do beco eram a cortina de fumaça perfeita, e ele já tinha saído. Me levantei, segui devagar pela sala, driblando os móveis um a um, já com o gostinho de gritar junto o gol. Pus a mão na maçaneta, fria, quase dava choque. A porta abriu devagar e o vento frio me arrepiou. Ela nem falou nada, perto de ficar livre eu me prendi. A respiração parou e aquele frio subiu pela barriga, em segundos. Ele não precisou improvisar, eu precisei. Enquanto a chuva caia, e a bola do Maradona, do meio campo, explodia no travessão; eu na frente da vovó, fingia uma preguiça sonâmbula.
De manhã cedo, a gente tava acordado, prontos pra ir pra escola. Ele tinha um sorriso no rosto que denunciava uma alegria desmedida, enquanto eu não via a hora de ouví-lo. Era inveja e ansiedade. Ele me contou tudo, com todos os detalhes que não davam pra ver pelas frestas do lençol.
Desde aquele dia, tive certeza de que ser livre não é para qualquer um. É preciso ter vocação para a liberdade. Um dia quase morri porque tentei seguir de novo os passos dele. Da areia via o jeito como ele mergulhava de cabeça na água, parecia tão fácil. Fui lá tentar porque ainda  não tinha percebido que aquela era a metáfora da vida dele. Eu engoli muita água mas consegui sobreviver. Ele, depois de muito tempo, alguns filhos e muitas mulheres depois de nossa história, morreu afogado. Sentiu-se mal e foi mergulhar, provavelmente de cabeça, de maneira intensa, como sempre fez quando queria se sentir livre.

26 de jul. de 2004

VERSOS INQUIETOS

Seus olhos me olham cada vez mais perto
E com o tempo com os meus se confundem
Fazendo oásis o que antes era só deserto.

Estamos vivos!
Sinto seu cheiro, o gosto da sua pele,
E todos os seus pensamentos lascivos
Mesmo que não me reveles.

As respirações confundidas
As palavras indecentes
Os gestos sem medidas.

E nesse jeito de te ter com loucura
Sem compostura; de maneira voraz
Cada vez que me pedes um beijo com doçura
Cravo meus dentes no teu corpo e te mordo ainda mais.

Doce é a dor da mordida
Sente prazer a alma, mesmo com a carne ferida
E somos tomados por uma febre
Que, apesar de às vezes breve,
É a melhor coisa da vida.

Me faz livre, me faz leve, me faz viva
Que esse desejo em mim não cessa
A vontade é grande; curta é a vida
E quando meu desejo "termina", vem o teu e começa.

Vem o gozo, e depressa me recomponho
Vem o tesão querendo recomeçar
E, perdoem-me se as palavras que disponho
Não conseguem a sensação de liberdade expressar.

Raquel Medeiros é Redatora e Estudante de Publicidade e Propaganda no IESP


19 de jul. de 2004

OPERAÇÃO TAPA -TUDO

Tome-se buraco por ausência; vácuo; vazio; lacuna. Mais que cavidade, aqui os buracos são o sinal mais latente de abandono.
A cidade anda atolada num buraco tão profundo que parece impossível medir. Até porque, há tempos que um lento e gradual processo de letargia nos acomete. Covas também são buracos. E à medida que cresce nossa insensibilidade, um tom apocalíptico ajuda a constatar que realmente, há um buraco para cada um de nós. Sem saber o que fazer, a cidade assiste impassível a metástase dos buracos, desenganada pelas autoridades. A culpa, fácil constatar, é da chuva. Precipitada por natureza, ela causou todos os males e, pior, evitou que se aplicasse logo o remédio para a cura das mazelas. Fez de vítima todos nós aqui, lá no interior, mais perto do que a gente podia imaginar. Precipitação combinada com falha na fundação, lá no começo, na raiz do problema. E mais um buraco preencheu de vazio a existência de milhares. Manchete de primeira do Jornal Nacional, a precipitação, a falha, o buraco e a tragédia fizeram parte da programação durante alguns dias. O poder público no Brasil sempre soube da importância de audiências para a resolução dos problemas, aqui, no nosso interior, não foi diferente. Nem seria diferente na nossa tragédia cotidiana. Havia, antes de tudo acontecer, um plano de ação ostensiva contra a proliferação dos buracos nas principáis vias da cidade. Era a sonora e popular, Operação Tapa-Tudo que, por causa das chuvas, não pôde ser iniciada. Ainda bem. Houve tempo para percebermos que buracos maiores estavam nas nossas caras, casas e escolas. Em horário nobre, uma estatística pobre, demonstrava por A+B que nossas crianças e escolas tinham falhas terríveis, falhas na fundação, um buraco na aprendizagem, falhas na raiz de uma tragédia maior. Pior que qualquer buraco é a ausência. É a constatação de que nós estamos na “lanterna de um futuro que virá”. Pior é saber que a Operação Tapa-Tudo, está dando muito certo, antes mesmo de começar.
 
EXTRA
 
Existe uma coisa interessante que lembrei assim que soube que escreveria sobre buracos. Senão todo mundo, muitos sabem que a Globo, em geral, sempre deixa “deixas”, anunciando as trilhas sonoras de suas novelas. Assim, se formou uma geração de pessoas que decoravam sempre partes de canções de muito sucesso. É o que a gente pode nomear, aqui na brincadeira, de One Part Hit. Essas “deixas” servem para tapar os buracos proporcionados pelos espaços comerciais e as chamadas dos programas.
 

16 de jul. de 2004

SEXO CASUAL, ORGASMO VIRTUAL

Até parece que tem que dar duas para a coisa pegar.
Ou então imaginar que a luz acabou, foi para eu me concentrar melhor.
Ou fingir que me concentrava ali e partir para uma nova dimensão.
Você pegou na minha mão, me puxou para cantos ainda mais escuros e eu fui.
Mas te digo, e peço perdão, eu não estava.
Daí ao fim, perdi-me na conclusão de tudo.
Você sentiu?
Me diz, você sentiu?
Tudo bem, não vá se envergonhar.
Amar não é para qualquer um.

 

Marília Valengo é Redatora de Publicidade


8 de jul. de 2004

MEDO DE SHOPPING

Um dia antes, saí suando frio por causa da claustrofobia. Palavras, apenas com os funcionários do motel em que estava instalado. Nunca um hóspede de motel fizera tão pouca questão de privacidade e discrição quanto eu. Comecei pedindo um hambúrguer, não porque estava com fome, e sim porque senti falta de falar com alguém. Saí cedinho do motel e me certifiquei de que não esqueceria de nada que pudesse me atrapalhar durante o dia. Dinheiro, remédio para dor de cabeça, walk-man tocando Razorblade Suitecase* e um sorriso no rosto pronto para amenizar minha angústia. Rodei. Tudo andou em círculos. Vi mulheres lindas, crianças chorando nos brinquedos de plástico bio-degradável, hastes de madeira rodando em fios de açucar, e as músicas no random, no repeat...
O belo violino nos acordes das canções do Razorblade marcou o dia como uma cicatriz de um ferimento profundo. Chorei muito ao ver que podia morrer ali rodando naquele shopping tão tranqüilo. Provavelmente ninguém verteria lágrimas por um desconhecido. Chorava no banheiro, porque não queria que as pessoas me vissem. Mas sempre deixava lágrimas num canto de olho. A gente sempre acha que as pessoas têm interesse espontâneo por nós. Esperava mesmo que alguém olhasse exatamente naquele canto do olho, que continha só um pouco do que me sobrava. Era medo. Comecei a me perguntar porque estava ali. Estava ficando escuro, a cidade era grande, e eu passava por becos ainda mais assustadores que os sentimentos autodestrutivos que sentia.
Estava só. Poderia fazer o que quisesse. Poderia desistir de tudo e voltar. Por que insistir em continuar passando despercebido? Sabia que era importante continuar, mas estava doendo muito a solidão. Na verdade, tinha medo de assumir uma tarefa que nunca tinha cumprido. Sempre fui centro, nunca tinha sido periferia. Naqueles momentos, eu estava esquecido. Notei que tinha medo de ficar só , de morrer só.
Mesmo sofrendo e chorando, decidi que só sairia de lá quando terminasse o que tinha de fazer. Os soluços continuavam, as lágrimas haviam untado as maçãs do meu rosto com um óleo que cintilava à medida que passava pelas placas e vitrines iluminadas. Deu para compreender perfeitamente o significado de walkman, o enjôo foi latente e aos poucos pude ouvir acordes descompassados, uma voz desafinada que de certa forma acalmou meus pensamentos. Segui o som, mas desvendei a ilusão antes das miragens. Fiquei de longe observando o caos sonoro daquele shopping, me convencendo de que seria impossivel para alguém conseguir ser ouvido com a atenção necessária, mesmo rosto a rosto, quanto mais à distância e intermediado por uma aparelhagem tão sofrível quanto a acústica malfeita daquela construção. Sucessos do rádio se intercalavam enquanto tentava decifrar as letras de cada canção entoada pelo músico. Pensava: “O que será que esse cara deve pensar de cantar nesse barulho todo? Se eu fosse esse bicho, não pagava esse mico.” De repente notei que havia algo mais incômodo que o barulho ensurdecedor do cotidiano climatizado daquela praça de alimentação. O tal músico errava sempre algumas estrofes das músicas, e o erro era insistente. Será que só eu notava?
Quase tomei nota do erros... Aquilo estava realmente me atormentando. De uma hora pra outra esqueci do sofrimento daquele dia e passei a me perguntar o que fazia um cara como aquele, cantar numa merda barulhenta daquelas e nem se dignar a lembrar das letras. Passei a me aproximar mais rapidamente do tal cantor. O fim da apresentação estava próximo. Não havia possibilidade de bis. Ninguém prestara tanta atenção assim. Procurei o canto de olho, o mesmo untado das maças, entretanto enxerguei mais naquele homem baixo e levemente calvo, que se aproximou de mim e perguntou:
– Pois não. Algum problema?
Haviam muitos, mas algumas perguntas não se respondem. Calei e, logo em seguida, perguntei:
– Você canta aqui há muito tempo?
Ele me olhou, no canto do olhar não tinha nada. Nas maças, nenhum sinal de sofrimento. O sorriso enganou mais que sua resposta.
– Hoje é meu último dia. Não se preocupe.
O homem saiu. Violão nas costas e passos firmes, sequer olhou para trás.
Mirei-me em seu exemplo e me arrisquei nos becos daquela cidade fedorenta até chegar no motel. Deitei cedo, dispensei o hamburguer com o tempero emocional e sonhei com o dia em que iria embora dali.
Acordei cedo demais para um banho, mas tarde para o café grátis. Fechei minha conta e pus as mãos na bagagem que agora parecia bem mais pesada. Sentado numa cama redonda de motel, cansado de rodar em busca de algo que justificasse tanta solidão, eu abri o jornal do dia e comecei a especular até quando agüentaria. Primeiro na página de esportes (aí muita gente foi preterida), depois conferi o sangue anônimo que corre nas páginas policiais. Lá, nas últimas colunas, uma foto em tons de cinza, e um título popularesco, me chocou.

Corda de violão vira forca para músico na Bela Vista

A foto era daquele homem. O mesmo idiota que errava a letra das músicas.
Naquela hora entendi o porquê do sorriso dele. Ficou claro que ele errava para tentar atrair a atenção das pessoas. Percebi a minha idiotice. Na verdade não havia enxergado nada. Os acordes desafinados e as letras erradas eram o canto de olho, a maçã untada daquele cara.
Olhei demais pra mim para tentar decifrar porque tanto medo. Na odisséia circular por aquele shopping, me deixei levar pela tola apreciação de que o mundo girava ao meu redor.
Ignorei a verdade incontestável de que o medo mede nossos limites.


*Razorblade Suitecase (1996) é o segundo álbum da Banda de Rock Britânica Bush

PÁSSAROS

Me peguei pensando sobre o medo. Talvez eu tenha até medo de sentir medo. Imagina só! Que coisa. Mas comecei a pensar nesse sentimento ao ver os pássaros. Ninguém chega perto dos pássaros. Ninguém. Só eles mesmos. E porque que existe esse "bate asas" todo pra longe da gente? E como explicar os pombos? "Ah! Os pombos são bobos, não ligam.", vai dizer aquele homem no canto da sala. Não! Eles ligam, mas só fogem quando realmente sentem que ali vem merda. Ninguém pega um pombo. "E as galinhas, otário?", indaga o burronildo ignorante do outro lado da sala. Galinha não é pássaro. É ave, mas não é pássaro. Ah! Mas que coisa, eu num tou aqui pra explicar o que é pássaro. Tou aqui pra falar de medo. E admito ter medo de falar disso. Pois o medo é, para mim, o sentimento mais incrível de todos. "Até o amor perde pra ele?", pergunta aquela infanto-pornô-juvenil cheia de espinhas na cara numa das primeiras cadeiras. O amor existe para quem não tem medo dele.

Sou um pássaro. Aliás, todos somos. Mas prefiro enquadrarmos na qualificação de pombos. Pois pombos não saem por aí fugindo de todo mundo. Pois o medo de ser tocado é enorme naqueles que não se entregam na vida. E pombo que se entrega, pra mim, é pombo morto. Ironia, não? Passarinho que come pedra, sabe o cu que tem. Pois é, não vá sair por aí se entregando pra todo mundo, Justafá! Pera aí. Eu tou saindo do tema novamente. Eu tenho que falar de medo. Mas admito: tenho medo de falar do medo. E por isso eu fujo, eu grito, eu birro, eu choro, eu tremo, eu mostro língua, eu canto, eu assobio, eu faço besteira, eu me escondo, eu fico com medo. Afinal, eu sou um pássaro, mas não posso voar. E finalmente, aquele burronildo ignorante do outro lado da sala grita: "Então você é uma galinha, idiota!!!"


João Faissal é ator, webdesigner, diretor de arte e estudante de Educação Artística

2 de jul. de 2004

EGOLATRIA

Autoria
Auto-estima
Auto-ajuda
Autografia

Autofagia
Autofelatio
Auto-imagem
Autoparasitia

Autonomia
Auto-suficiência
Autoridade
Autocracia

Autologia
Autopiedade
Auto-indulgência
Astrologia

Automatia
Auto-exílio
Autocídio
Autópsia

Autolatria
Auto
Alterego
Egolatria

Alex Camilo é poeta, estudante de jornalismo e redator de publicidade.