28 de ago. de 2004

BRUNA E DOMENICO E AS TEORIAS DO DESEJO À PREGUIÇA

As olheiras denunciavam um sono comprometido.
Pela casa, multiplicavam-se aromas e fotografias artísticas da Bruna.
A mulher de Domenico era constrangedoramente bonita. Muito corpo. Puro carisma.
Difícil não perder a concentração do problema do amigo.
– Guuuuto, acorda cara!!!
Olhei com aquela cara de comiseração. Domenico chorava compulsivamente. Um choro transbordante, daqueles que a gente tenta intercalar, balbuciando algumas palavras.
Entre soluços, me explicou que Bruna tinha ido embora.
Perguntei porque e ele não quis me dizer. Entrando pelo quarto, lágrimas deixando uma poça em sua camisa, percebi que o cenário de abandono era mesmo evidente.
Ele continuou calado, só as contrações falavam. Depois de algum tempo é que começou a me contar como tinha conhecido a Bruna.

Ela surfista, corada de praia, cabelos dourados de parafina e pele ressecada de sol. Ele de óculos no rosto e pouco papo.
– Pancadão de boate já viu né?
Domenico já conseguia sobrepor um sorriso no rosto oleoso de tanto choro. Já punha os olhos para cima, procurando as melhores lembranças. Lembrou do primeiro grande encontro. Me dizia que as palavras que não conseguia dizer, as pupilas se encarregavam de dilatar o sentido. Palavras e olhares ácidos. Muito ácido e em pouco tempo, um gozo rápido consumou uma relação intensa.
Em 3 meses se casaram, montaram apartamento. Ele arrumou emprego como vendedor numa livraria, eram 10 horas de trabalho todo dia. Bom para deixar mais quente a relação recém-formada.
Bruna não trabalhava, estudava direito na USP. Mas era, mesmo sem trabalhar, o antagonismo daquelas patricinhas filhas-de-papai-que-só-estudam. O cheiro forte de fungos de biblioteca e alguns daqueles tijolaços ainda espalhados pela casa comprovavam que ela levava realmente a sério sua formação.

Depois de pouco mais 8 meses de trabalho duro, Domenico conseguiu antecipar suas férias. Ele era especial no trato com as pessoas, no caso específico, seu gerente facilitou tudo. Difícil mesmo foi entender porque seu casamento começou a ruir a partir daquilo que devia ser o ápice de uma história de amor.

– Guto... Não dá pra entender porque ela desistiu da nossa vida, pra viver... Pra viver daquele jeito.

Nos primeiros dias, foi tudo bem: muito carinho, café da manhã na cama e aquele amor testosterônico no começo do dia. Aos poucos, menos de duas semanas, Bruna passou a questionar porque Domenico decidira tirar férias antecipadas. Afinal ele era novo no emprego e por mais que contasse com a simpatia dos clientes e de seu chefe, não poderia abusar tanto assim só por um capricho. Ela insistiu para que Domenico voltasse das férias forçadas. Mas a bronca de Bruna não o demoveu. Havia muito desejo por trás da idéia.

– Por favor, Domenico! Eu odeio gente preguiçosa. Acorda, pelo amor de Deus.

E passou a ser assim todos os dias. Muita briga, pouca atenção dividida.
Bruna saia à tarde e só chegava depois da faculdade, equilibrando os livros empilhados e demonstrando uma indiferença terrível aos carinhos de Domenico.
Muitas vezes em vão acordava, porque o espaço na cama já estava vazio.
Foi assim até que ele resolveu se esforçar para agradá-la de verdade. Acordou cedo e saiu para caminhar, na volta a encontrou pronta para sair.
Bruna sorriu e disse:

– Gostei de ver. Vou resolver umas coisas da faculdade na casa da Lu e depois volto.
– Mas agora pela manhã? – perguntou curioso.
– É. Um trabalho, Domenico. Trabalho exige dedicação, entendeu?

O apartamento do casal ficou para trás. Descemos a Rua Augusta e eu já estava com medo. Rodamos no meu carro durante uma meia hora até chegar num flat.
Ele me pediu pra entrar na frente. No hall cruzei com alguns caras de gravata, havia também funcionários do flat terminando uma faxina. Entramos no elevador e Domenico só abriu a boca para dizer o número do andar. Mãos no bolso e olhos para cima, não para lembrar de coisas boas, só para conferir os andares que iam passando. A porta abriu. Mais um cara, dessa vez mais velho do que os que estavam no hall, passou por nós com um sorriso no canto do rosto. Domenico insistiu para que eu fosse na frente. Fui me aproximando da porta 707. Estava entreaberta e eu fiquei com vergonha. Domenico fez aqueles gestos rápidos com as mãos espalmadas como se me empurrasse imaginariamente para dentro do mini-apartamento. Entrei. Lingerie pelo chão, os mesmos aromas do apartamento de Domenico e uma explosão ensurdecedora logo após o meu espanto.

– Meu Deus!!! Já que tirastes minhas forças, por favor, acaba com o meu desejo.

A história de Bruna e Domenico acabou sem ao menos ter começado. Quando cheguei junto ao seu corpo, entendi porque ele se manteve o tempo todo com as mãos no bolso. Junto à mão esquerda, um bilhete boiava leve numa poça de sangue. Era bem menos pesado que seu conteúdo, um pedido de socorro, um clamor.
Já no velório, traje de viúva sobre o belo corpo, Bruna me chamou a atenção pela tranqüilidade. Atravessei o monte de pessoas que nos separavam, me pus ao seu lado e não me contive.

– Você matou o Domenico. – Sussurrei no seu ouvido.
– Você sabe que não. Domenico morreu porque tinha preguiça de sofrer.
– Como você pode dizer uma coisa dessas?
– Guto, por favor, me poupe. Domenico sempre foi um acomodado. E assim foi em tudo na vida dele, inclusive no nosso casamento.
– Francamente...Não entendo como você ainda se acha no direito de dar lição de moral sobre preguiça.
– Guto...Faça o que achar melhor. Mas, por favor, me deixe em paz.

Feito do desejo a vítima, meu amigo se foi porque cometeu um pecado capital: se apaixonou.

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